Por: Michaell Lange,
Londres, 25/03/19 –
Logo que cheguei a Londres em 2002, um amigo que dividia casa comigo me deu um telefone celular que ele havia achado no Pub onde trabalhava. Segundo ele, tudo que eu precisava fazer era ir a uma loja de telefones e pedir o desbloqueio do mesmo. Lembro-me de ter ido dormir contente por não precisar gastar meu dinheiro para comprar um telefone. No dia seguinte, fui a uma loja de telefones e pedi ao atendente que desbloqueasse o telefone para mim. Mas, o atendente me disse que eles não faziam esse tipo de serviço. Surpreso, perguntei porque, ja que meu amigo havia me dito que qualquer loja faria o serviço. O atendente então me respondeu com uma frase que eu jamais esqueceria. “Não fazemos isso porque é ilegal”.
Eu tinha 25 anos de idade e aquela foi a primeira vez que alguém havia me dito que não faria algo porque era ilegal. Foi meu primeiro tapa na cara de uma sociedade com níveis de moralidade que eu ainda não havia experimentado. No caminho de volta para casa, aquela frase não me saia da cabeça. Logo, percebi que aquele telefone não era meu, muito menos do meu amigo que o havia achado na noite anterior. O fato de acharmos algo não nos da o direito automático de posse. Aquele telefone pertencia a alguém, e nele deveria haver informações importantes e de valor pessoal para o seu verdadeiro dono. Ao chegar em casa, liguei o telefone e aguardei por uma ligação que não tardou a chegar. Com o telefone entregue ao dono e uma enorme sensação de satisfação como recompensa, percebi que quando vivemos numa sociedade extremamente corrupta, nossos valores são corrompidos desde o primeiro dia de vida. Na maioria dos casos, nossa primeira experiência com propina e suborno acontece ainda dentro de casa, com nossos pais. O sistema de propinas começa cedo na vida dos Brasileiros. Quem nunca negociou com os pais alguma forma de recompensa em troca de cortar a grama, recolher a roupa ou lavar a louça? Isso não é negocio, isso é corrupção pura! Somos parte de uma família e nosso direito de viver na casa vem junto com os deveres de ajudar a mante-la. Meus pais nunca me cobraram aluguel, então por que o filho se acha no direito de cobrar ou ser pago para cuidar de um bem que também é dele? O mesmo serve para o nosso país, que também é a nossa casa, e temos o dever moral de mante-la limpa, organizada e justa.
Mas, é preciso reconhecer que é extremamente difícil nascer e crescer numa sociedade intrinsecamente corrupta e não ser também, um corrupto. Se você não conhece a diferença, se você não tem outros parâmetros e uma base moral sólida, é quase certo que você não irá reconhecer o erro, e inevitavelmente irá se juntar ao clube, salvo algumas poucas exceções que sofrerão as consequências de ser o certinho da turma. Foi assim comigo. Eu achava que era uma pessoas honesta, que era um bom motorista, um bom cidadão, um bom filho. Achava que tinha bons níveis de moralidade. Quando cheguei a Londres, descobri que quase tudo que eu acreditava não era verdadeiro. A sociedade Brasileira vive uma espécie de bolha de desculpas onde encontramos todos os tipos de justificativas para cada um dos nossos delitos, e como todo mundo faz a mesma coisa, vivemos um romance com a nossa própria miséria moral. Quando todo mundo é corrupto junto, encontramos conforto, mas não encontramos moralidade. Eu também achava que a corrupção nunca teria fim, e por isso, nunca fiz muito esforço nesse sentido, afinal de contas, todo mundo fazia a mesma coisa. Mas aí, a sociedade Britânica me mostrou que o poder para acabar com a corrupção não estava fora, mas dentro de mim. Se eu deixar de ser corrupto, eu terei acabado com a corrupção. Simples assim. E se a maioria das pessoas tiver a mesma atitude, os níveis de corrupção seriam muito menores e mais fáceis de serem combatidos. No meu caso, a convivência dentro de uma sociedade com parâmetros morais muito mais elevados do que os que eu estava acostumado, foi o que me ajudou a ver o que antes, era parte do que a minha sociedade aceitava como normal. Mas essa formula não funciona para todo mundo. Conheço pessoas que vivem no Reino Unido a muito mais tempo do que eu e não aprenderam nada. Existe até um ditado popular que diz, “saiu do Brasil mas o Brasil não saiu de você”. É preciso um pouco de vontade para ver, aprender, evoluir e então, se libertar desta coberta maldita da pobreza moral que além de outros males, é um campo fértil para todas as formas de corrupção.
A diferença entre a sociedade Britânica e a sociedade Brasileira, é Moral. Sem um mínimo de moralidade, nenhum cidadão, em qualquer lugar do mundo, consegue entender a importância de seguir regras e Leis, que formam a base fundamental do bom funcionamento de qualquer sociedade. O respeito as Leis, as regras, ao bem publico, o respeito ao ser humano, o respeito a si próprio, dependem de uma base moral que determina os limites dos direitos e deveres de todos os cidadãos. Uma sociedade que de um lado aceita uma criança abandonada na rua a viver de migalhas, e por outro lado, uma relação de amor entre duas pessoas do mesmo sexo causa consternação nacional, é uma sociedade com profundos problemas morais. Não há inversão de valores no Brasil. Há sim, um equivoco muito grave nos conceitos fundamentais que orientam os níveis morais da nossa sociedade. Muita gente vai achar um exagero eu dizer que na sociedade Britânica as pessoas se amam. Mas, se você considerar que a gentileza e o respeito são propriedades do amor, então, não há exageros nessa afirmação.
Essa relação de respeito e gentileza na sociedade Britânica, vem de casa. Vamos partir do seguinte princípio, um filho não respeita os pais porque apanha. O filho que apanha, tem medo dos pais. Logo, medo não é respeito, muito menos educação. Medo é medo. Educação exige tempo, esforço, respeito e gentileza (propriedades do amor). Surra, mesmo que de leve, não é propriedade do amor, é violência. Bater no filho é uma solução covarde e preguiçosa de resolver um problema pequeno e criar um problema muito maior para a sociedade, que futuramente vai aceitar a agressão física como algo normal. O Britânico senta-se com o filho e explica para ele porque ele não deve fazer certas coisas, e esse dialogo é repetido quantas vezes forem necessárias até que ele entenda a importância dos padrões morais dessa sociedade. Amor, orientação e limites, essa é receita Britânica para educar os filhos. Nas escolas Britânicas, as crianças aprendem desde cedo sobre religião, mas não apenas sobre uma religião. Aprendem política, mas não apenas sobre uma única ideologia. Aprendem regras, e a importância de serem seguidas. Aprendem sobre Leis, e a importância de não serem quebradas. Aprendem sobre Direitos, e a importância de serem respeitados. Aprendem sobre Justiça, e a importância da sua manutenção. Aprendem sobre Culturas, e a importância de serem reconhecidas. Aprendem sobre meio ambiente, e a importância de preservar. Meu filho tem apenas 6 anos de idade! Todo esse investimento na formação de cidadãos, e não apenas na formação profissional, formam a base social Britânica que faz com que suas crianças cresçam tendo consciência de que elas são sócias das suas comunidades e por isso a chamamos de sociedade.
Mas, nem sempre foi assim. O século 19 não foi marcado apenas pela revolução industrial. As cidades Britânicas eram sujas e sem qualquer saniamento básico. Rebeliões de trabalhadores eram reprimidas com força bruta pelo governo e organizadores acabavam enforcados. Não haviam regras para construções. As pessoas construíam das suas próprias maneiras. Os poucos banheiros que existiam eram compartilhados por dezenas de casas. o lixo e o esgoto eram jogados nas ruas. Não havia coleta de lixo. A pobreza era epidêmica e as pessoas viviam em regime de subsistência ou total miséria. Estima-se que 80% da população era formada pela classe trabalhadora. Apenas alguns homens tinham o direito de votar. Crianças trabalhavam até 12 horas por dia. Em 1833 o parlamento “finalmente” aprovou uma Lei que proibia crianças abaixo de 9 anos, de trabalhar nas fabricas. O conceito de fabricas naquela época era: locais com mais de 50 pessoas trabalhando em alguma forma de produção. Crianças entre 9 e 13 anos não poderiam trabalhar mais de 12 horas por dia, e crianças de 13 a 18 anos, não poderiam ultra-passar uma carga horária de mais de 69 horas por semana. Crianças entre 9 e 13 anos, eram obrigadas a ter 2 horas de aulas por dia. Famílias eram tão pobres que todos precisavam trabalhar longas horas, incluindo as crianças. Era comum crianças de 5 anos de idade trabalharem em minas de carvão.
Os Britânicos viveram no Século 19 algo semelhante com o que o Brasil viveu na metade do século 20. A industrialização causou uma explosão populacional nas grandes cidades. Em 1801 apenas 20% da população britânica vivia nas cidades. Em 1851, esse índice passava de 50%. Junto com a super população, vieram os problemas. Crime, pobreza, epidemias, baixos salários e baixa qualidade de vida. Mas, foi nesse mesmo período que organizações civis começaram a se envolver na política. A luta pelo fim da escravidão, a criação dos sindicatos trabalhistas, o direito de voto para mulheres e ainda duas grandes guerras que deixaram a Europa de joelhos. Desse período em diante, conquistaram-se os direitos trabalhistas, o fim da pena de morte, a construção de casas para famílias de baixa renda, a criação do NHS, um dos melhores sistemas de saúde publica do mundo, a legalização do casamento homoafetivo.
Não foi um caminho fácil ou justo para os Britânicos, mas eles e grande parte da Europa, provaram que a transição de uma sociedade medieval, violenta, injusta, desigual, pobre e subdesenvolvida, para uma sociedade moderna, desenvolvida, justa e segura, é possível. As organizações civis tiveram participação fundamental nestas mudanças e continuam tendo, porque apesar dos grandes avanços sociais, os Britânicos não são perfeitos. A evolução social é contínua, e a legislação e o sistema de educação precisam acompanhar estas transformações, afinal de contas, uma democracia é um sistema onde todo poder emana do povo.
Do ponto de vista Britânico, a transição da sociedade Brasileira para uma sociedade com padrões morais mais elevados, bem como os benefícios sociais do desenvolvimento humanos e econômico, deveriam ser muito mais fáceis. Os Britânicos precisaram aprender a respeitar as diferenças culturais. O Brasil ja nasceu multicultural. Os Britânicos precisaram inventar, desenvolver e aprender a lidar com os problemas da industrialização. O Brasil foi beneficiado por esse resultado. Os Britânicos precisaram buscar recursos naturais ao redor do mundo. O Brasil tem tudo a sua disposição. Os Britânicos sempre foram um povo reservado, conservador. O Brasil nasceu simpático, risonho, receptivo. Por séculos, os Britânicos precisaram impedir a invasão dos Franceses, Espanhóis e Alemães. O Brasil nunca teve inimigo. O Brasil tem instituições sociais fortes e ativas. Mas então, o que impede o desenvolvimento social, econômico e moral da sociedade Brasileira? Esta é uma pergunta difícil de ser respondida, e a resposta talvez não seja tão simples quanto parece. Mas, as vezes tenho a impressão de que nos falta determinação. Os Britânicos tinham autodeterminação antes de ter um país. Os Brasileiros parecem ter um país, mas nos falta autodeterminação. Talvez esta seja uma pergunta que cada Brasileiro precisa responder. Cada vez que nos questionamos e encontramos as respostas, damos um passo em direção ao desenvolvimento humano e social. É sempre bom lembrar que uma nação é feita pelo conjunto das atitudes diárias de cada cidadão. Se todos os Brasileiros tiverem boas atitudes diariamente, não há dúvidas de que o Brasil será uma boa nação…