Por: Michaell Lange
Londres, 01/11/20 –
A ignorância tem uns padrões interessantes. Ignorância, no que diz respeito à falta de informação e não na forma predatória da palavra. Ignorância na questão do Covid-19 por exemplo, que nega a existência da doença com base na fé conspiratória e critica aqueles que seguem as normas das agências sanitárias internacionais, formadas por cientistas de ponta das melhores universidades do mundo.
Essa primeira reação talvez seja até uma forma inconsciente de negação de uma realidade repentina e extraordinária cujo o cérebro tem dificuldades de registrar num primeiro momento. A diferença é que no caso do ignorante, mesmo passado o primeiro momento, ele continuará negando a realidade em troca de uma teoria baseada no achismo inconsequente e irresponsável. Até aqui é normal. Mas, começam a aparecer as evidências científicas de que uma pandemia esta se espalhando rapidamente pelo mundo e até mesmo os mais incrédulos passam a entender que algo muito sério esta de fato acontecendo. O ignorante, que usa Iphone, assiste TV, segue as redes sociais, pega ônibus ou anda de carro, avião e trem, tomou remédio a vida toda por diferentes razões, teve filhos ou fez cirugia, tem seus médicos preferidos e hospitais favoritos, agora, numa ação lunática e cheia de sentimento de superioridade, resolve rejeitar a ciência mesmo não rejeitando todas as outras facilidades e conveniências que a ciência lhe proporcionou e continua lhe proporcionando desde o primeiro dia de vida, garantida pela segurança do procedimento médico que permitiu ao ignorante, uma chegada segura e confortável ao mundo redondo que ele hoje acredita ser plano. A primeira grande evidência do ignorante é se recusar a usar mascaras porque não funcionam. Mas educadamente coloca a mão na boca para tossir. Faz sentido?
Mas eis que a situação chega a tamanha gravidade que o ignorante, por sua própria ignorância, “contamina-se” com o Covid-19. O uso do termo, “contamina-se”, é justificado aqui porque o ignorante, não acreditando nos riscos de algo que para ele nem existe, não toma os devidos cuidados e por isso, não é contaminado, mas contamina-se com o virus da Covid-19.
Correção: Eu havia dito no início que a palavra ignorante, seria usada no sentido de falta de informação e não de forma negativa ou predatória. Infelizmente, como uma grande parcela da ignorância, especialmente nos dias de hoje, é resultado da falta de vontade de pensar, questionar, pesquisar, ler e raciocinar, fica difícil não parecer predatório quando na verdade e de certa forma, é. Por tanto, com exceção aos casos em que somos legitimamente enganados (e quem não é?), pela incrível capacidade tecnológica de edição de imagens e o talento astuto de charlatões para convencer indivíduos a acreditarem no falso, o restante do grupo de ignorantes é mesmo formado por pessoas que preferem terceirizar suas opiniões e decisões do que ter o trabalho e o esforço para formar opinião própria. É essa inércia e ociosidade para exercitar nossas faculdades mentais que nos torna ignorantes. Essa ignorância nos faz incapazes de diferenciar até mesmo as formas mais simples do falso e do verdadeiro, do real e do irreal. A ignorância mata mais do que qualquer virus!
Voltando ao assunto, o ignorante, que acabara de receber a comprovação do teste – resultado de um procedimento cientifico – que determinou a presença do virus que ele não acreditava que existia, agora, entra em um estado de semi-pânico. A realidade irrefutável do resultado do teste, juntamente com os sintomas evidentes pelo calor da própria testa denunciado pelo mercúrio do termômetro, além do desaparecimento do olfato e do paladar, trazem para casa a cruel e inquestionável verdade. O ignorante então, entra numa nova fase. A fase na qual a presença de uma doença potencialmente fatal, transforma o ignorante num ser mais humano e humilde. Pelos próximos dez dias ele vai ter medo de morrer e isso vai fazer ele pensar nas coisas mais simples e importantes da vida. Os amigos, a família, o amor e a felicidade, passarão a fazer mais sentido e ter uma presença quase espiritual na mente do ignorante. De fato, essa humanização causada pela presença sintomática de algo que pode lhe trazer a morte, é quase uma salvação, porque faz o ignorante fazer algo que ele normalmente não faz, pensar, refletir. Mas a duração desse sentimento é infelizmente curto. Ele admite o erro, pede desculpas, pede para os amigos e familiares se cuidarem e passa a se cuidar também, como se tivesse aprendido a lição.
Porém, dez dias depois, inicia-se uma nova fase para o ignorante. É a fase final do ciclo que o levará de volta a sua condição natural. A fase final tem início no dia que ele recebe a notícia de que não tem mais Covid-19. Os sintomas foram embora e com eles, o medo de morrer e com o medo de morrer também se foram a humildade, a humanidade, os dramas e tragédias causados pela doença, a sensibilidade com as coisas simples da vida e a breve capacidade de entender as graves consequências que a doença pode trazer. Assim como na grande maioria dos casos, o ignorante também teve apenas sintomas leves e moderados e por conta disso, torna a acreditar que a idéia da Covid-19 ser apenas uma gripezinha, volta a dominar sua mente, afinal de contas, agora ele tem evidência científica para comprovar sua teoria, sua própria experiência. Os mais de um milhão de mortos, os milhões de infectados, as centenas de milhares de doentes entubados nas UTIs mundo afora e as centenas de milhares de vitimas vivendo com sequelas graves, não tem peso nos seus cálculos. O que importa é o que ele acha!
A fase final do ignorante, é o reencontro com a sua condição natural, a condição que lhe faz incapaz de compreender a relação de sofrimento das famílias de quem não sobreviveu ao Covid-19, ou sofreram sintomas ou sequelas graves. É o reencontro com os amigos e suas teorias conspiratórias sem sentido, sem evidência e facilmente desmentidas, mas que lhe faz se sentir novamente em casa, a vontade para apoiar abertamente quem defende a idéia absurda de que a doença não existe e que os cientistas e especialistas estão unidos para controlar o mundo. O ciclo da ignorância se fecha e a boiada passa enquanto milhares de outros ignorantes contaminam-se e ajudam na proliferação do virus. Mesmo assim ele tem fé de que a ciência irá encontrar a vacina para curar a doença que não existe. De fato, a ignorância mata mais que qualquer virus!