David Cameron E O Legado Da Escravidão (opinião)

By: Michaell Lange,

30/09/15 –

Em viagem de negócios ao Caribe, o primeiro ministro Britânico, David Cameron, não conseguiu evitar um problema que assombra a história do Reino Unido a séculos e ainda hoje, promove intensos debates sobre a responsabilidade Britânica no pagamento de indenização pelos danos causados pela industria da escravidão que mutilou a história de quase todos os países Latino Americanos e do continente Africano. Durante um encontro com a primeira ministra da Jamaica, Portia Simpson Miller, a questão da divida histórica foi apresentada a David Cameron que, mesmo reconhecendo a seriedade do problema, recusou-se a fazer um pedido de desculpas formal ou pagamento de qualquer reparação aos países Caribenhos que sofreram com a escravidão. Em 2013 em seu discurso na ONU, a primeira ministra da Jamaica ja havia formalizado um pedido para abertura de um debate internacional para abordar as questões esquecidas depois da abolição da escravidão.

Por mais de 200 anos, o Reino Unido foi o principal beneficiário da industria de escravos. Documentos do arquivo nacional Britânico denunciam o transporte de quase 13 milhões de pessoas entre a Africa e as Americas. Depois da abolição em 1833, o governo Britânico indenizou 46 mil donos de escravos por “perda de propriedade humana”. O valor total das indenizações chegaram a £17 bilhões de Libras (R$102 bilhões de Reais), o equivalente a 40% de todo o gasto do governo Britânico em 1834, incluindo £3 milhões de Libras (R$18 milhões de Reais), pago a família do atual primeiro ministro David Cameron. Nenhum escravo foi indenizado pelo governo Britânico.

O assunto tem sido amplamente debatido esta semana por toda a mídia Britânica, incluindo as redes sociais. A radio LBC – Leading Britain’s Conversation – deu grande destaque ao assunto e atraiu milhares de pessoas a participarem dos debates ao vivo. De todos os apresentadores da LBC, até mesmo o mais imparcial de todos (segundo minha opinião) James O’Brien, tiveram dificuldades para entender a magnitude da herança deixada pela industria de escravos. O argumento mais defendido por aqueles contrários a qualquer forma de pagamento compensatório ou pedido de desculpas é o de que nada pode mudar o que foi feito no passado. Outro argumento bastante ouvido é de que, não devemos nos prender ao passado mas sim focar no futuro. O equivoco destes argumentos é que a história pode ser antiga mas, as consequências continuam vivas como nunca. O Brasil é um grande exemplo desse legado. Em 1888 logo após a abolição, 80% da população Brasileira era de escravos. Escravos estes que por séculos, foram impedidos de se desenvolver naturalmente, geração após geração em total estagnação no desenvolvimento humano, enquanto que o branco Europeu seguia seu desenvolvimento sócio-econômico de forma continua e natural. O negro não é por tanto, uma raça inferior a branca como muitos grupos racistas costumam clamar, mas sabe-se que isolando-se um grupo de pessoas e privando-as de acesso a qualquer forma de educação ou possibilidade de desenvolvimento pessoal e humano, os resultados ao longo de séculos serão desastrosos. Foi exatamente isso que aconteceu no Brasil e na maioria dos países vitimas da industria de escravos. O sul do Brasil não é a região mais desenvolvida do Brasil por acaso. A região Sul teve pouca influência escrava e se beneficiou com a forte colonização Européia ou seja, pessoas que tiveram algum acesso a educação e desenvolvimento humano, enquanto que a população do Norte/Nordeste, predominantemente ex-escravos, tiveram beneficio sócio-econômico próximo do zero por conta de uma população esfacelada, torturada e privada de qualquer direito por centenas de anos. Seria como buscar um grupo de pessoas que viveram nos anos de 1700  e fossem libertados no centro de São Paulo numa manhã de segunda feira em pleno 2015. Sera que podemos chamar isso de liberdade? O resultado não poderia ser diferente. Os imigrantes Europeus que chegaram ao Brasil em meados de 1880 e 1900, prosperaram e logo se transformaram na classe dominante. Esse fenômeno não foi observado apenas no Brasil. Até nos EUA os estados do Sul, predominantemente descendentes de escravos são mais pobres que os estados do Norte, predominantemente brancos de origem Européia.

O impacto de séculos de exploração de um único grupo de pessoas continuam visíveis hoje da mesma forma que era visível em 1888. No Brasil de 2015, os negros são maioria absoluta nas prisões, nas periferias e na classe pobre do país. É como se aqueles escravos continuassem, ainda hoje, caminhando sem rumo, atordoados pelo trauma transferido de geração para geração. Dos 56 mil homicídios em todo o Brasil, 77% das vitimas são negros com idade entre 15 e 29 anos. Frente a tantas evidencias do impacto humano impostas sobre nossa população, é inadmissível que governos Europeus como o atual governo Britânico, se recusem a reconhecer e a formalizar pedidos de desculpas formais pelos irreparáveis danos causados a inúmeras gerações de pessoas cuja as gerações descendentes de hoje, continuam pagando um preço altissimo por um crime que eles nunca cometeram.

É correto afirmar porem, que o pagamento de indenizações em dinheiro, não é a solução para o problema, muito menos qualquer repasse de verbas aos governos dos países vitimas da escravidão. Isso seria um grande equivoco. O que precisa ser devolvido as vitimas é exatamente aquilo que lhes foi tirado ou seja, o desenvolvimento humano, a dignidade e consequentemente, a qualidade de vida. A única maneira de reparar o legado escravo, ao meu ver, seria a criação de um fundo monetário organizado e administrado pelos governos envolvidos na industria escrava, como Portugal, Holanda, França e Reino Unido, com objetivo único e exclusivo de construir escolas e universidades em países vitimas como o Brasil, Jamaica, Colombia etc, nas quais apenas negros seriam admitidos. As escolas e as universidades seriam partes do mesmo sistema no qual o aluno iniciaria a vida acadêmica na pré-escola e sairia formado na universidade. Todo esse sistema educacional seria independente do sistema educacional Brasileiro ou seja, todas as escolas e universidades seriam administradas pelos governos envolvidos no fundo monetário para a reparação dos danos humanos deixados pela escravidão. Todos os envolvidos seriam beneficiados com esse projeto. O Brasil ganharia com o fortalecimento do IDH da sua população que consequentemente levaria a uma baixa nos níveis de criminalidade de rua, e aumento nos níveis de desenvolvimento sócio-econômicos que incluiria qualidade de vida. Os descendentes de escravos seriam recompensados pelo mal causado as gerações passadas e os países Europeus se beneficiariam com a utilização da diplomacia cultural que transfere conhecimento e valores sociais, econômicos e religiosos aos Brasileiros criando uma relação mais harmoniosa e possibilitando no futuro, mais acordos sócio-econômicos entre os países envolvidos.

É quase certo que muitos de vocês, ao lerem sobre essa idéia até aqui, ja estejam revoltados e cheios de perguntas e questionamentos sobre a legitimidade de tal ideia. Alguns até encontrarão argumento racista nessa. Outros questionarão a divisão e a segregação dos negros ou irão me acusar de promover Apartheid. Outros questionarão como seria possível definir um negro com tamanha miscigenação de raças no Brasil. Todos estes argumentos são corretos e fundamentalmente inevitáveis. Mas é importante considerar que eu estou apresentando uma solução possível para um problema sério, e nenhuma solução trás consigo 100% de perfeição. Qual seria a solução? A certeza que tenho é a de que, quando queremos algo, conseguimos. Acabamos de descobrir agua em Marte por exemplo. Vivemos o conforto da internet, do google e do Iphone. Nenhum destes projetos foi concluído sem que as pessoas acreditassem neles. Dessa mesma forma, as dificuldades e os problemas de um projeto de tal escala seriam superados a partir da credibilidade das pessoas sobre a importância dos seus resultados. Pessoalmente, estou aberto a todo tipo de critica, como também estou aberto a discutir outras soluções. O que não podemos fazer é continuar ignorando um problema secular com o argumento simplista de que o crime foi cometido a muito tempo atras e nenhuma das vitimas esta viva para ser recompensada. As vitimas podem não estar mais vivas, mas as consequências daquele crime certamente estão e podem ser facilmente observados em todos os países vitimas da escravidão. É importante reconhecer que as consequências continuam atuais e visíveis aos olhos de quem quer ver. O que não podemos fazer é continuar aceitando que lideres como David Cameron cuja a própria família foi indenizada pela abolição da escravidão, continue ignorando um dos problemas mais sérios da história da humanidade como se ele não tivesse nada a ver com isso. Existem ainda hoje, verdadeiras fortunas ditando as regras no mundo financeiro, que não existiriam não fosse os lucros produzidos pela mão de obra escrava. Mesmo em Londres, o Museu Britânico, a Galeria Nacional de Arte, e grande parte da malha ferroviária que corta o país, foram financiadas com dinheiro dos escravos. Moralmente, cada descendente de escravo deveria ser dono de ações destes lugares cuja existência não seria possível sem a condenação a uma vida miserável e desumana de milhões de escravos, vitimas de um regime que até hoje se recusa a admitir sua divida com estas pessoas. Numa analogia com um crime mais recente, vale lembrar que o Holocausto promovido pelos Nazistas contra o povo Judeu durou 5 anos e certamente deixou um legado eterno. A Industria de escravos durou mais de 200 anos, e mesmo assim os responsáveis se recusam a assumir qualquer responsabilidade. Esse é um assunto que os lideres e a mídia Européia não fazem muita questão de debater frequentemente. Cabe a nós, cidadãos do mundo, através das redes sociais, continuar pressionando os responsáveis por esse crime contra a humanidade até que seja admitida a responsabilidade, e as formas compensatórias sejam definidas e postas em pratica em todos os países vitimas. Assim como as vitimas do holocausto Nazista foram reconhecidas e os responsáveis foram presos e condenados, as vitimas da escravidão precisam ser reconhecidas e ressarcidas do prejuízo histórico que ainda pode ser recuperado.

Leia mais:

University College London – https://www.ucl.ac.uk/lbs/

The Guardian – http://www.theguardian.com/world/2015/jul/12/british-history-slavery-buried-scale-revealed

The Guardian – http://www.theguardian.com/commentisfree/2015/sep/30/david-cameron-slavery-caribbean?CMP=fb_gu

LBC Radio – http://www.lbc.co.uk/calls-for-uk-to-pay-over-jamaica-slave-trade-117086